Textos, crônicas, artigos, rascunhos, ficção, milk shake de idéias. O Lado B do meu LP.

sexta-feira, 16 de março de 2007

Camadas

Era uma vez uma criatura estranha. Se era mesmo uma pessoa, ninguém sabia. Porque ela era toda coberta de cascas, como uma banana, uma árvore, ou qualquer outro exemplo de coisas assim. Ela não tinha nome, nem identidade. Tinha, sim, um sorriso cativante, então por mais que fosse uma criatura estranha e com cascas, vivia muito bem ali na cidade e chegava até a passar despercebida pelos moradores.

Era inteligente. Com um pouquinho de audácia e altas doses do seu sorriso encantador, conseguiu um bom emprego como professora das crianças na escolinha municipal. “Criaturinha carinhosa”, diziam as mães, ao deixarem seus pequeninos na aula. Ela chegava sempre meia hora antes do horário do sinal, e ficava ali esperando, pois todo dia uma das mães tinha um conselho a pedir. Ela dava dicas sobre educação de filhos, nutrição, relacionamento conjugal. Passava receitas de remédios caseiros que aprendera com a mãe e contava a quem quisesse ouvir o ingrediente “secreto” do seu famoso bolinho de chuva.

Ela tinha vários dons, e sabia usá-los como ninguém. Era especialista em encantar e em fazer as coisas acontecerem. Capacidades inegáveis e tão intensas, que mal cabiam naquele corpo estranho, coberto de cascas. E foi provavelmente com estes poderes quase mágicos que conquistou o coração de um forasteiro, que passava pela cidade em uma de suas muitas viagens vendendo tecidos. Ele a presenteou com roupas novas, vestidos leves, cores vibrantes. Largou a vida de estradeiro e abriu uma lojinha nos fundos da casa onde eles passaram a morar.

Ela era boa profissional, boa amiga, boa conselheira e excelente esposa! O forasteiro estava completamente apaixonado e ela fazia de tudo por ele. A vida era realmente boa.

O problema é que o tempo foi passando e tanto o forasteiro quanto ela começaram a pensar na possibilidade de ter um bebê. Um filho era o que poderia completar aquela existência quase perfeita que eles levavam. Ela sempre gostou de crianças, era uma professora magnífica. Era boa dona de casa, cozinhava como poucas na cidade. E principalmente, era tão carinhosa, que com certeza seria uma ótima mãe.

Mas acontece que, coberta por todas as camadas, ainda não se sabia se a criatura era gente ou não. Ninguém lembrava de perguntar, nem o marido. E mesmo que perguntassem, ela não poderia responder. A verdade, o grande segredo que absolutamente ninguém sabia é que ela mesma não tinha idéia do que existia embaixo de todas aquelas cascas. Esta cobertura sempre esteve ali, e ela nunca teve acesso ao que existia por dentro.

Angustiada com a questão, ela decidiu fazer uma visita ao médico que, claro, nunca tinha visto nada parecido em toda a sua carreira. Sem nenhuma referência, só restou perguntar: “você já tentou se descascar?”. Não. Ela nunca tinha tentado arrancar as cascas, nem a pontinha. Não conseguia imaginar passar por tamanha dor! O médico se ofereceu para realizar uma cirurgia, e pelo menos começar a remover a carcaça. Claro, com anestesia geral.

Mas o que seu consciente não sabia é que a dor, com certeza, não era seu maior medo. Mais difícil do que tudo seria descobrir finalmente o que existia ali dentro, tão protegido e inexplorado. O risco era grande. Será que mesmo sem a casca ela poderia continuar sendo realmente boa em tudo? Valeria a pena passar por um sofrimento tão enorme?

Sua primeira resposta interna foi não. O processo de se descascar seria arriscado demais, melhor tocar a vida como se nada tivesse acontecido. Mas infelizmente era impossível. A verdade já estava ali, no ar que ela respirava, nos seus sonhos noturnos, na sua alma recém descoberta. Ela passou a sentir, por todos os segundos do dia, algo que nunca havia sentido antes: angústia. E era insuportável.

Ela finalmente decidiu descascar, uma por uma, as suas camadas, mas não aceitou a ajuda do médico. Sabia que era algo que deveria fazer sozinha. Nem o marido estava presente, nem eu, nem ninguém. Mas a cidade inteira ouviu o inédito som do seu choro compulsivo.

E ela tinha razão, depois disso, tudo mudou. A vida não era mais assim, tão boa. Mas pela primeira vez, ela foi verdadeiramente feliz.

2 comentários:

Anônimo disse...

Eh, para gente ser feliz, tem que sofrer muito antes... Tudo que eh mais dificil realmente eh mais gostoso...

Gosto dos seus textos... porque felizmente ou infelizmente me identifico muito com eles... risos

Anônimo disse...

Há momentos que precisamos vestir as cascas, em outros, tirá-las.A vida é feita por diversas experiências, o mais importante é aprender a lição...ou ficamos de recuperação!!
Bjus, Paty!!
Sandra