Textos, crônicas, artigos, rascunhos, ficção, milk shake de idéias. O Lado B do meu LP.

sexta-feira, 30 de março de 2007

Eu guardo dentro de mim, num espacinho pequeno entre a barriga e o peito, uma caixa trancada, com cadeado e tudo. Não sei como ela é, pois nunca tirei um raio X e nem fiz ultrassom. Aliás, as modernidades da medicina não combinam muito com a minha caixa: tenho certeza que nenhum médico ou cientista acreditaria que ela existe, e por mais certeza que eu tenha, detesto que duvidem da minha palavra. Por isso nunca nem tentei ver a caixa. Eu sinto que ela está lá e isso é suficiente para mim.

Também não dá para saber exatamente onde ela fica. Até porque faltei em todas as aulas de anatomia. Poderia dar diretrizes, mas não há motivos para isso, afinal, o que importa mesmo é que ela está bem guardada e dentro de mim. Se está perto do estomago, fígado ou rim, é pura geografia. E geografia também não combina muito com a minha caixa. Ela está ligada a assuntos mais psicológicos do conhecimento humano, talvez até filosóficos.

Muitas vezes me pego imaginando como ela é... como se eu estivesse grávida e ficasse sonhando acordada com a carinha do meu bebê enquanto aliso com as duas mãos o meu ventre. Não. Esquece. A sensação é completamente diferente. Sonhar com um bebê que vai nascer é uma experiência de boa ansiedade, de ternura, carinho e emoção. Quando eu penso na caixa, é quando ela está se fazendo sentir dentro de mim, quando todo seu conteúdo está querendo explodir o cadeado, entornar o caldo, transbordar de alguma forma. Não há suavidade e nem delicadeza nesta sensação.

Voltando à aparência, sempre a vejo como sendo de madeira, clara, como aquelas caixas de mudança com um FRÁGIL bem grande e vermelho pintado na lateral. Apesar de ser fechada só com uma trinca e um cadeado enferrujado, ela nunca foi aberta. O que há lá dentro nunca conseguiu escapar por inteiro. Um pouco sim, pelas laterais que não são lacradas, mas o grosso ainda está por lá, às vezes agitado, às vezes hibernando.

O que transborda, eu imediatamente identifico: uma angústia há muito guardada, uma memória semi-esquecida, pequenos traumas de infância, divisores de água, momentos de euforia. Ou mesmo um pouco de esperança, como na caixa da Pandora. O que ainda está ali, eu não sei o que é. Posso até tentar adivinhar, como uma detetive que descobre qualquer coisa a partir de pistas e evidências. Ou um daqueles médicos legistas dos seriados de TV. Mas investigação não combina muito com a minha caixa. Ela é totalmente sexto sentido, e a minha intuição diz que ainda não é tempo de saber o que ela esconde.

terça-feira, 27 de março de 2007

Exercício de observação

E o que são as gotas de chuva, afinal?
Se são lágrimas, de Deus ou de qualquer outra pessoa/ser/ente/energia, será que são de tristeza ou de alegria?
Se é água benta caindo aos baldes, quem estará abençoado? As pessoas, os animais, as plantas ou só nós dois?
Se gotas de chuva são para limpar a alma, que parte do seu universo interno está precisando de uma faxina? E cadê o sabão em pó, a cândida, o desinfetante e a esponja? Ou só um bom banho de água limpa já elimina todos os seus pecados?
As nuvens carregadas são mensageiras de alguma coisa a mais do que o simples fato de que vai chover. Especialmente quando estão como agora, com raios de sol saindo pelas suas tangentes, mostrando quem realmente brilha no céu.
Ou não são?

Há quem olhe para o céu e veja todo o esplendor da natureza, e só. Há quem olhe para o céu e enxergue um infinito de possibilidades.

sexta-feira, 23 de março de 2007

A casa da vovó é cheia de flores
E tem um cheiro suave de jasmim
Borboletas de todas as cores
Voam felizes ao redor do jardim.

A vovó tempera o feijão
Com sal, pimenta e louro
Guarda com carinho as receitas
Num velho caderno capa de couro

Ali tem gargalhada de criança
E canções antigas na vitrola do vovô
O nhéc nhéc da cadeira que balança
O tilintar das agulhas de tricô

No fim da tarde, é acesa a lareira
Para esquentar as noites mais frias
Contos de fadas, leite com chocolate
Assim felizes terminam os dias.

Na casa da vovó machucado não dói
E tudo é sempre surpresa
Todo menino é super- herói
Toda menina é princesa.

sexta-feira, 16 de março de 2007

Camadas

Era uma vez uma criatura estranha. Se era mesmo uma pessoa, ninguém sabia. Porque ela era toda coberta de cascas, como uma banana, uma árvore, ou qualquer outro exemplo de coisas assim. Ela não tinha nome, nem identidade. Tinha, sim, um sorriso cativante, então por mais que fosse uma criatura estranha e com cascas, vivia muito bem ali na cidade e chegava até a passar despercebida pelos moradores.

Era inteligente. Com um pouquinho de audácia e altas doses do seu sorriso encantador, conseguiu um bom emprego como professora das crianças na escolinha municipal. “Criaturinha carinhosa”, diziam as mães, ao deixarem seus pequeninos na aula. Ela chegava sempre meia hora antes do horário do sinal, e ficava ali esperando, pois todo dia uma das mães tinha um conselho a pedir. Ela dava dicas sobre educação de filhos, nutrição, relacionamento conjugal. Passava receitas de remédios caseiros que aprendera com a mãe e contava a quem quisesse ouvir o ingrediente “secreto” do seu famoso bolinho de chuva.

Ela tinha vários dons, e sabia usá-los como ninguém. Era especialista em encantar e em fazer as coisas acontecerem. Capacidades inegáveis e tão intensas, que mal cabiam naquele corpo estranho, coberto de cascas. E foi provavelmente com estes poderes quase mágicos que conquistou o coração de um forasteiro, que passava pela cidade em uma de suas muitas viagens vendendo tecidos. Ele a presenteou com roupas novas, vestidos leves, cores vibrantes. Largou a vida de estradeiro e abriu uma lojinha nos fundos da casa onde eles passaram a morar.

Ela era boa profissional, boa amiga, boa conselheira e excelente esposa! O forasteiro estava completamente apaixonado e ela fazia de tudo por ele. A vida era realmente boa.

O problema é que o tempo foi passando e tanto o forasteiro quanto ela começaram a pensar na possibilidade de ter um bebê. Um filho era o que poderia completar aquela existência quase perfeita que eles levavam. Ela sempre gostou de crianças, era uma professora magnífica. Era boa dona de casa, cozinhava como poucas na cidade. E principalmente, era tão carinhosa, que com certeza seria uma ótima mãe.

Mas acontece que, coberta por todas as camadas, ainda não se sabia se a criatura era gente ou não. Ninguém lembrava de perguntar, nem o marido. E mesmo que perguntassem, ela não poderia responder. A verdade, o grande segredo que absolutamente ninguém sabia é que ela mesma não tinha idéia do que existia embaixo de todas aquelas cascas. Esta cobertura sempre esteve ali, e ela nunca teve acesso ao que existia por dentro.

Angustiada com a questão, ela decidiu fazer uma visita ao médico que, claro, nunca tinha visto nada parecido em toda a sua carreira. Sem nenhuma referência, só restou perguntar: “você já tentou se descascar?”. Não. Ela nunca tinha tentado arrancar as cascas, nem a pontinha. Não conseguia imaginar passar por tamanha dor! O médico se ofereceu para realizar uma cirurgia, e pelo menos começar a remover a carcaça. Claro, com anestesia geral.

Mas o que seu consciente não sabia é que a dor, com certeza, não era seu maior medo. Mais difícil do que tudo seria descobrir finalmente o que existia ali dentro, tão protegido e inexplorado. O risco era grande. Será que mesmo sem a casca ela poderia continuar sendo realmente boa em tudo? Valeria a pena passar por um sofrimento tão enorme?

Sua primeira resposta interna foi não. O processo de se descascar seria arriscado demais, melhor tocar a vida como se nada tivesse acontecido. Mas infelizmente era impossível. A verdade já estava ali, no ar que ela respirava, nos seus sonhos noturnos, na sua alma recém descoberta. Ela passou a sentir, por todos os segundos do dia, algo que nunca havia sentido antes: angústia. E era insuportável.

Ela finalmente decidiu descascar, uma por uma, as suas camadas, mas não aceitou a ajuda do médico. Sabia que era algo que deveria fazer sozinha. Nem o marido estava presente, nem eu, nem ninguém. Mas a cidade inteira ouviu o inédito som do seu choro compulsivo.

E ela tinha razão, depois disso, tudo mudou. A vida não era mais assim, tão boa. Mas pela primeira vez, ela foi verdadeiramente feliz.

quinta-feira, 15 de março de 2007

...
Ele pegou a farinha no armário, mas ela não sabia onde estava a batedeira. Ele faz uma piada machista qualquer, um comentário sobre a inversão de papéis na sociedade moderna, mas com aquele sorriso que só ela sabe decifrar, abre a despensa e traz o eletrodoméstico ainda semiusado. A batedeira mora na última prateleira, e divide o espaço com o microprocessador de alimentos, o forninho elétrico zero quilômetros e a panela wok. Todos seres complicados demais para o mercado de trabalho. A sanduicheira costumava viver por ali, até ter sido descoberta como uma das maiores invenções do mundo moderno, e acabou colega de quarto do grill elétrico e do liquidificador.
Voltando à cena na cozinha, ela com o pacote de farinha (a de trigo) na mão, e eles continuam rindo da piada. Ela abre o pacote e fica com alguns fios de cabelo cobertos com aquele pó branco. Parece comédia romântica, e de comédia romântica sim ela entende. E gosta tanto que é capaz de assar um bolo para transformar sua vida em enredo. Ele, no entanto, está mais interessado na comida. Por isso, mede meticulosamente as xícaras de farinha. Prova o açúcar para ter certeza de que não é sal. É ele que sabe onde está o chocolate do Padre. E que quebra os ovos em um copo separado para evitar um desastre de proporções catastróficas.
Ela observa e no máximo ajuda um pouco. A função de assistente de chefe é perfeita: ela pode aprender o passo a passo da receita, mas prefere que ele sempre esteja junto.
Ele explica como rodar a tigela enquanto bate a massa, ela observa atentamente o contorno musculoso do seu braço. Ele unta a assadeira, ela o abraça por trás e dá um beijo de leve no pescoço.
Ele pré-aquece o forno, ela já está em ponto de ebulição.

terça-feira, 13 de março de 2007

Não há você sem mim e eu não existo sem você

Não é todo dia que você encontra o amor da sua vida. Pode ser que aconteça uma única vez, e seja mais fulminante do que um ataque cardíaco! Pode ser que nunca aconteça. E pode ser que você encontre tantos amores, que acabe até se acostumando! Não tem regra, não tem garantias. Cada pessoa passa por isso de forma diferente e sempre vive para contar a história (diferente do ataque cardíaco!).

E antes que me perguntem como sabemos que aquela pessoa é mesmo o amor da nossa vida, já respondo: você sabe. Respondo com aquele conhecimento de causa que só quem não é psicólogo e não tem um pingo de conhecimento teórico sobre o assunto tem. O conhecimento de quem já passou por isso e tem esta certeza em cada pequeno ossinho do corpo. Você não conhece o grande amor da sua vida. Você reconhece! É como se vocês tivessem uma ligação tão anterior àquele momento, tão ancestral, que o olhar cruzado, o sorriso trocado e principalmente o toque são absolutamente familiares. É como voltar para casa, mas uma casa onde você nunca esteve antes.

O amor da sua vida não precisa ser eterno. Aliás, esta pressão da eternidade é que estraga um pouco o momento do reconhecimento. Você encontra a pessoa, olha nos olhos, sabe que é exatamente ELA, mas já entra na história com a nuvenzinha do “mas será que é para sempre?” rondando a cabeça. O amor da nossa vida pode durar exatos cinco minutos, contadinhos no relógio. Mas serão cinco minutos tão intensos, que terão gosto de eternidade.

Outro dia um amigo me disse que estava se preparando para a chegada da pessoa certa. Que se você não está preparado, seu grande amor pode passar na sua vida pelo menos dez vezes e não será reconhecido. Mas se você liga os radares e presta atenção, tudo pode ser mais imediato. Discordo em gênero, número e grau! Não há forma do amor da sua vida passar despercebido por você. Mesmo que você não queira, mesmo que não esteja preparado. E digo mais... as chances de acontecer quando você menos espera são muito maiores. Quando você não se prepara é que o furacão vem com maior intensidade, derrubando suas casas e fazendo com que suas vaquinhas fiquem rodopiando no ar. É quando você não está olhando para os dois lados que o caminhão vem e te atropela com tudo, te deixando inteiro quebrado, recolhendo seus pedacinhos pela estrada e tentando reencaixar como eram antes, mas sem sucesso. A chegada do grande amor da sua vida te deixa sempre com a sensação de estar totalmente desmontado, e com pecinhas faltando, justo aquelas que costumavam ser fundamentais na sua existência. Mas te garanto: elas não te farão falta!

Amar intensamente é como uma febre. Se você precisa do termômetro, é porque está, no máximo, em estado febril. Febre mesmo, febre alta, não tem meio termo: você treme de frio, tem dor no corpo inteiro, fica com a pele queimando de tão quente, sem forças para fazer muita coisa. Então, se você está com muita dúvida e desesperado por um termômetro para saber se está mesmo amando, provavelmente não está. Pode ser a pessoa mais maravilhosa do mundo, e pode ser que você escolha ficar com ela, mesmo para sempre. Mas não é o grande amor da sua vida.

Até porque, como já diziam Tom e Vinícius, todo grande amor só é bem grande se for triste. Tamanha intensidade muitas vezes pode significar um sofrimento de igual proporção. O amor da sua vida pode ser a pessoa mais errada do mundo para você. Encontra-lo, finalmente, pode significar que é exatamente o momento ideal para ficar um pouco sozinho. É uma experiência que mete um medo danado, que pode muito bem paralisar todas as ações, dos dois! Quem sabe? Como eu disse logo no começo, não há regras e nem garantias.

Mas uma coisa é certa. Ele chega para transformar a sua vida. Que seja para sempre ou não, feliz ou triste, certo ou errado, não importa. O que importa é que a sua vida não será mais a mesma. E é exatamente por isso que ele é tão importante. É exatamente por isso que ele é fundamental.